O Papa chegará amanhã a Figo Maduro às dez da manhã.
Já tudo ou quase tudo se disse.
Francisco tem 86 anos e uma saúde frágil. É provável que não volte a Portugal, provável que a sua vida não se possa estender muito mais anos.
Amanhã, no final da madrugada, entrará num carro que o levará ao aeroporto. Duas horas depois aterrará neste nosso tão instável país.
2.
Tem sido a minha batalha, talvez inglória.
A de te dizer que será um privilégio aproveitar a vinda deste homem que nos ofereceu esperança, que nos soprou a palavra que, ao mesmo tempo, nos permite o milagre de voltar a acreditar e nos condena à inapelável desilusão do confronto com a realidade.
Temos de aproveitar Francisco enquanto aqui está.
De lhe agradecer a chispa de luz que continua a sair do seu corpo, do seu olhar terno, das suas desarmantes palavras.
Recordo-me de o ter visto a lavar os pés a um preso transsexual na Quinta Feira-Santa, noite em que se celebra a Última Ceia.
Lembro-me de o ter observado na visita que fez a um albergue de prostitutas. A maneira como as ouviu, como com elas trocou correspondência.
Lembro-me daquele homem deformado que nos obrigava a virar a cara, o modo como Francisco se aproximou e o abraçou e lhe beijou as feridas durante uns segundos que me pareceram a eternidade.
Lembro-me de Francisco celebrar a missa para uma Praça de São Pedro deserta pela força de uma pandemia que nos ameaçava com o holocausto.
Lembro-me de como convocou as vítimas de pedofilia para o palácio, de como incentivou os bispos em todo o mundo a abrirem as suas caixas de Pandora.
Lembro-me de o ver com crianças, a responder-lhes a todas as perguntas ou a pedir aos artistas para não se esquecerem dos pobres.
Lembro-me quando nos disse que era humano, que gostava de futebol e que adoraria poder voltar a passear incógnito nas ruas de Buenos Aires e a dançar um tango de Piazolla com uma mulher bonita.
3.
Sabes o que Francisco disse a Tolentino Mendonça quando o conheceu fora dos cumprimentos de circunstância?
“Senhor padre, acha que me pode conceder cinco minutos do seu tempo?”
Tolentino ficou atrapalhado, sem saber onde meter as mãos e o sorriso.
“Sua Santidade, o senhor é que me tem de conceder um bocadinho do seu tempo”.
E eles foram e encontraram-se no pequeno quarto de Tolentino, divisão que lhe fora destinada num retiro em Roma que, à última da hora, soube que teria a presença de Francisco.
Falaram quase uma hora.
E sabes do que falaram?
De Fernando Pessoa e de Jorge Luís Borges.
E no final da conversa, Francisco fez silêncio e perguntou a Tolentino se queria rezar com ele.
4.
Estas jornadas são decisivas para o que acontecerá após sua a partida.
Um homem que nos convoca para a ideia de pertença, para o martírio da esperança, para a urgência de questionamento, para a responsabilidade de estar à altura, para a vontade de combater por um mundo mais largo, para a constatação de que um ateu ou um agnóstico é também filho de Deus – mesmo que para ateus e agnósticos Deus continue a não existir.
E nele não há ponta de medo, já repararam? É como se levitasse por entre contrariedades, obstáculos, inimigos – que os tem e não tão poucos quanto isso.
4.
Impressionante como não se deixou corromper no olhar, a sua mais poderosa das armas. Um olhar capaz de devolver a dignidade aos que estão na cave do mundo, veremos isso quando o virmos rezar em Fátima ajoelhado e ao lado de alguns jovens a cumprir pena no Estabelecimento Prisional de Leiria.
Ou quando o virmos entre os miúdos de todo o mundo com os seus olhos de criança grande.
Teremos tempo para discutir as coisas más da Igreja e a relação com o Estado.
Mas amanhã chegará Francisco.
Um homem que tendo feito tanto, que tendo aberto tantas portas, continua a precisar do abraço do mundo para que a revolução não morra com ele.
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