sexta-feira, 23 de julho de 2010

Quando fiquei fechado na Capela

Póvoa, Juvandes, Lamelas, Arneirós e Chãos formam a freguesia de Vila Nova do Souto d'El-Rei de onde sou natural. Nasci em Juvandes onde residi até aos 10 anos, altura em que a minha família veio para Arneirós.
Nesta quinta-feira, passei pela Juvandes para celebrar Missa pela mãe de uma cunhada minha, já que afazeres paroquiais inadiáveis me haviam impossibilitado de ter estado no funeral.
Pouquíssimas vezes tenho oportunidade de regressar às origens, mas sempre que por lá passo desbobina-se o filme da infância com traços muito vivos. Por que razão a maioria das pessoas conserva com maior acuidade o filme da sua infância do que o do resto da vida?

Recordo aquele povo há perto de 50 anos. Não havia estrada alcatroada nem luz eléctrica. Lembro perfeitamente a chegada do primeiro rádio e do telefone público. As famílias eram numerosas e as pessoas começavam a trabalhar ainda o Sol dormia e regressava a casa já o Sol dormia profundamente. Aplicava-se ali o provérbio: "O trabalho de menino é pouco, mas quem o despreza é louco". Assim, as crianças também trabalhavam.
Só duas pessoas não participavam na Missa dominical que era alternadamente celebrada em Juvandes e Póvoa ao nascer do Sol.
De facto o Sol era o relógio do povo. Raríssimas famílias tinham relógio de sala e de pulso penso que ninguém.

Neste contexto, compreende-se que a devoção do Mês de Maio fosse feita na Capela muito tarde. E eu ia como a maioria dos demais miúdos. Todos à frente, bem juntinhos que o espaço era pouca para tanta gente.
Acontece que uma das vezes fiquei nas escadas que davam acesso ao púlpito por falta de outro lugar. Cansadito, adormeci.
Só me lembro acordar, baralhado pelo silêncio e pelo tremelicar da luzinha da lamparina que adensava ainda mais o meu medo. Portas fechadas à chave por fora. E agora? Reparei entretanto que a porta principal não tinha chave, mas uma forte tranca por dentro. Como chego à tranca? Onde é que tenho forças para a levantar? A necessidade espicaça o engenho. Tanto saltei, com tanta força bati na tranca que consegui que ela caísse.
Dei a corda toda aos sapatos (Sapatos? No Verão eram a sola dos pés!). E nem viva alma na rua que se apresentava escura como breu onde só o ladrar dos cães quebrava o silêncio. Cheio de medo, preocupado com a reacções de meus pais, cheguei a casa deitando os bofes de fora.
- Só agora? - perguntou minha mãe que finalizava a ceia (Sim, naquele tempo chamava-se lá ceia ao jantar).
- Pois, a oração demorou muito...
E ficou por aí.
Comi a sopa mais para para enganar a ansiedade do que para matar a fome. Mil perguntas me assaltavam aflitivamente: "Deixei a porta da Capela aberta. Se a roubam, que vai ser de mim? E se os meus colegas descobrem, amanhã na escola gozam-me até eu arranjar um buraquinho para me enterrar..."
Felizmente, e contra as minhas expectativas, nenhum comentário se ouviu. Penso que o sacristão, quando de madrugada foi tocar às "Avé-Marias", vendo a porta aberta, se convenceu que foi ele que se esqueceu de a ter fechado na noite anterior. Talvez por isso, se tenha calado.
Sorte a minha.

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