Creio que não posso escrever neste livro sobre as coisas que amo, sem falar também na nossa Igreja, sobre a minha querida Igreja. Compreendo que, ao fazê-lo, não estou muito na moda, porque hoje o habitual é falar dela, pelo menos, com desinteresse (e tantas vezes com ferocidade!), inclusive os crentes. Dizem que o sinal dos tempos é gritar: “Cristo, sim; Igreja, não”. Isso me parece tão sem sentido como dizer “quero a alma de minha mãe, mas a minha mãe, não”. Tenho pena de não entender aqueles que a insultam ou desprezam “em nome do Evangelho”, ou os que parecem sentir-se envergonhados da sua história e pensam que só agora ou no futuro vamos construir a “verdadeira e fiel Igreja”. Não sei; penso que, talvez quando já esteja no céu, hei-de sentir compaixão por isso tudo em que cá em baixo transformámos a Igreja; mas enquanto estiver na terra já tenho bastante trabalho em amá-la para ter ainda tempo de ficar a olhar os seus defeitos.
Vou ver se explico um pouco as razões pelas quais quero bem à Igreja. Para ser um pouco sistemático, vou reduzi-las a cinco fundamentais.
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Como poderia eu não amar aquilo
porque Jesus morreu?
A primeira é que ela saiu do lado de Cristo. Como poderia eu não amar aquilo porque Jesus morreu? Como poderia eu amar a Cristo sem amar, ao mesmo tempo, aquelas coisas pelas quais Ele deu a Sua vida? A Igreja - boa, má, medíocre, santa ou pecadora, tudo isso junto - foi e continua a ser a esposa de Cristo. Posso amar o esposo e desprezá-la a ela? Mas - dir-me-á alguém - como podes amar alguém que tantas vezes atraiçoou o Evangelho, alguém que tem tão pouco a ver com o que Cristo sonhou que fosse? Não sentes pelo menos “nostalgia” da Igreja primitiva? Sim, claro que sinto nostalgia daqueles tempos em que - como dizia Santo Irineu - “o sangue de Cristo estava ainda quente” e em que a fé era ardente e viva na alma dos crentes. Mas que é que justificaria que eu sentisse saudade da minha mãe jovem e sentisse menos amor por minha mãe velhinha? Poderia eu desprezar os seus pés cansados e o seu coração fatigado?
Ouço por vezes em alguns púlpitos e em algumas tribunas jornalísticas vozes demagógicas que nem têm o mérito de ser novas. As que falam, por exemplo, de que a Igreja é agora uma esposa prostituída. Recordo aquele disparatado texto que Saint -Cyran enviou a São Vicente de Paulo e que é - como certas críticas de hoje - um monumento de orgulho: - “Sim, eu reconheço que Deus me concedeu grandes luzes. Fez-me compreender que já não há Igreja. Deus fez-me compreender que há cinco ou seis séculos que não existe Igreja. Antes, a Igreja era um grande rio de águas transparentes; mas agora o que nos parece ser a Igreja é apenas lodo. A Igreja era a sua esposa. Actualmente é uma adúltera e uma prostituta. Por isso a repudiei e a quero substituir por outra que seja fiel”.
Fico, é claro, como São Vicente de Paulo, que, em vez de se pôr a sonhar passadas ou futuras utopias, se entregou à construção da sua santidade, e com ela, da Igreja.
Um rio de lama tem de ser limpo, e não apenas condenado. Sobretudo quando ninguém pode apresentar esse suposto libelo de repúdio que Cristo teria entregue à sua Igreja.
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A Igreja e só ela me deu Cristo
A segunda razão por que amo a Igreja é porque ela e só ela me deu Cristo e tudo quanto eu sei dele. Através dessa imensa cadeia de crentes medíocres chegou -me a memória de Cristo e do Evangelho. Sim, por vezes foi maculado ao ser transmitido: mas tudo o que sabemos dele nos chegou através dela. Ela não é Cristo, bem sei. Ele é o absoluto, o fim; ela, apenas o meio. Inclusive, é certo que quando eu digo “creio na Igreja” o que estou a dizer é que creio em Cristo, que continua a estar nela; quando bebo um copo de vinho o que de facto bebo é o vinho e não o copo. Mas como poderia beber o vinho se não tivesse o copo? O cano não é a água que passa por ele, mas como o cano é importante! A Igreja e só ela me deu Cristo
O centro final do meu amor é Cristo, ela “é a câmara do tesouro, onde os apóstolos depositaram a verdade, que é Cristo”, como dizia Santo Irineu. Ela é “a sala onde o pai de família celebras as bodas do filho”, como escrevia São Cipriano. Ela é verdadeiramente - agora é o rio de Santo Agostinho que transborda “- a casa de oração adornada de visíveis edifícios, o templo onde habita a tua glória, a sede insubstituível da verdade, o santuário da eterna claridade, a arca que nos salva do dilúvio e nos conduz ao porto da salvação, a querida e única esposa que Cristo conquistou com o seu sangue e em cujo seio renascemos para a tua glória, com cujo leite nos amamentámos, cujo pão da vida nos fortalece, a fonte da vida com que nos sustentamos”.
Como poderia não amar eu quem me transmite todos os legados de Cristo: a eucaristia, sua palavra, a comunidade dos seus irmãos, a luz da esperança? A sua história, porém, é triste, está cheia de sangue derramado, de intolerância, de legalismo, de casamentos com os poderes deste mundo, de hierarcas medíocres e vendidos… Sim, é verdade. Mas também está cheia de santos.
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Pesam muito mais os sacramentos
do que as cruzadas,
os santos
do que os Estados Pontifícios,
a Graça
do que o Direito Canónico.
E esta é a terceira razão do meu amor. Quando subo num comboio lembro-me sempre de que a história dos caminhos de ferro está cheia de acidentes. Mas nem por isso deixo de usá-los para me deslocar. “A Igreja — dizia Bernanos” — é como uma companhia de transportes que, há dois mil anos, transporta os homens da terra para o céu. Em dois mil anos teve muitos descarrilamentos, e uma infinidade de horas de atraso. Mas graças aos seus santos a empresa nunca faliu”. É verdade, os santos são a Igreja, são o que não nos deixa perder a confiança nela. Eu sei muito bem que a história não foi um idílio. Mas, no fim de contas, na hora de avaliar a Igreja, pesam muito mais os sacramentos do que as cruzadas, os santos do que os Estados Pontifícios, a Graça do que o Direito Canónico.
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Como temos os olhos doentes,
só vemos as zonas doentes da Igreja
só vemos as zonas doentes da Igreja
Quero eu dizer com isto que amo a Igreja invisível e não a visível? De modo nenhum. Penso que Bernanos tinha razão ao escrever que “a Igreja visível é o que nós podemos ver da invisível.” Como temos os olhos doentes, só vemos as zonas doentes da Igreja. Não é mais cómodo? Se víssemos os santos, teríamos obrigação de ser como eles. È mais fácil “tranquilizar-nos” a olhar apenas as suas zonas obscuras, que ao mesmo tempo nos dá o prazer de as criticar e a tranquilidade de saber que todos são tão medíocres como nós.
Se não fôssemos tão humanos, veríamos mais os elementos divinos da Igreja, que só não vemos porque não somos dignos de os ver.
Atrevo-me a dizer um pouco mais: eu amo com maior intensidade a Igreja precisamente porque é imperfeita. Não que goste das suas imperfeições, mas porque penso que sem elas já há muito teria sido expulso dela. No final de contas, a Igreja é medíocre por estar formada de pessoas como nós, como tu e como eu. É isto que, definitivamente, nos permite continuar dentro dela.
E o que Bernanos dizia com fina ironia:
“Oh, se o mundo fosse a obra-prima de um arquitecto obcecado com a simetria ou de um professor de lógica, de um Deus deísta, a santidade seria o primeiro privilégio dos que mandam; cada grau da hierarquia corresponderia a um grau superior de santidade, até chegar ao mais santo de todos, o Santo Padre, é claro. Gostariam, porém, de uma Igreja assim? Sentir-se-iam bem dentro dela? Deixem-me rir. Em vez de se sentir bem, ficariam nessa congregação de super-homens a rodar o barrete entre as mãos, como um mendigo à porta do hotel Ritz. Felizmente, a Igreja é uma casa de família onde existe a desordem que há em todas as casas familiares, com cadeiras sem um pé, mesas manchadas de tinta, e onde os frascos de doces se esvaziam misteriosamente nas prateleiras, que todos conhecemos muito bem, por experiência própria”.
Felizmente na Igreja imperam as divinas extravagâncias do Espírito, que sopra onde quer. Graças a isso nós podemos agradecer a Deus todas as noites que não nos expulsaram da casa da qual todos somos indignos. Temos, é claro, de lutar por melhorá-la. Mas sem esquecer que sempre foi medíocre, sempre será medíocre, como nas casas há sempre poeira por mais cuidadosa que seja a sua dona.
Não se sabe por onde, mas o pó está sempre a entrar. E nós limpamos o pó em vez de estarmos a perguntar por onde é que ele entrou.
Rigorosamente falando, todas essas críticas que projectamos contra a Igreja deveríamos lançá-las contra nós mesmos. Vou dizê-lo em latim, com as palavras preciosas de Santo Ambrósio: “Non in se, sed in nobis vulneratur Ecciesia. Caveamus igitur, ne lapsus noster vultus Eclesiae fiat” ( a ferida da Igreja não está nela, está em nós mesmos. Tenhamos por isso cuidado, não aconteça que as nossas faltas se transformem na ferida da Igreja).
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A Igreja é a minha mãe
A quinta mais cordial das minhas razões é que a Igreja é – literalmente – minha mãe. Gerou-me e continua a amamentar-me. Gostaria de ser como Santo Atanásio, que se “agarra Igreja como uma árvore se agarra ao chão”. E poder dizer, como Orígenes, que “a Igreja arrebatou-me o coração. Ela é a minha pátria espiritual, a minha mãe e os meus irmãos”. Como envergonhar-me então das suas rugas quando sei que foram nascendo de tanto trabalho de nos dar à luz?
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Espero, por todas essas razões, encontrar-me sempre nela como num lar aconchegado. Desejo - com a graça de Deus - morrer nela, como sonhava e conseguiu Santa Teresa. Será o meu maior orgulho na hora final.
Espero, por todas essas razões, encontrar-me sempre nela como num lar aconchegado. Desejo - com a graça de Deus - morrer nela, como sonhava e conseguiu Santa Teresa. Será o meu maior orgulho na hora final.
Nesse dia gostarei de repetir um pequeno poema que escrevi há muitos anos, ainda seminarista. É um mau poema, mas conservo-o tal qual, porque creio que exprimia e exprime o que vai no meu coração:
Amo a Igreja, estou com as suas torpezas,
com as suas ternas e formosas colecções de loucos,
com a sua túnica cheia de manchas e pecados.
Amo os seus santos e os seus parvos,
com a sua túnica cheia de manchas e pecados.
Amo os seus santos e os seus parvos,
amo a Igreja, quero estar com ela.
Ó mãe de mãos sujas e vestidos gastos,
cansada de nos amamentar,
cheia de rugas por dar à luz sem descanso.
Não temas nunca, mãe querida, que os teus olhos de velha
nos levem a outros portos.
nos levem a outros portos.
Não foi a beleza que nos fez teus filhos.
Foi o teu sangue derramado.
Cada ruga da tua fronte nos apaixona
e o brilho cansado dos teus olhos atrai-nos para ti.
Hoje, cansados, sujos e com fome,
Hoje, cansados, sujos e com fome,
não esperamos palácios nem banquetes,
mas a tua casa, mãe, com uma pedra para nos sentarmos.
In Razões para o amor
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