domingo, 6 de fevereiro de 2022

Rayan e a homilia que não tinha preparado

Este é o domingo dos mais pequeninos. De Isaías, o profeta de lábios impuros; de Paulo, o menor dos apóstolos; de Pedro, o pescador pecador. É o domingo que exalta a preferência de Deus, pelos que não apostam na sua força, na sua grandeza, na sua capacidade, na sua presunção, mas põem a sua confiança inteira no Senhor e nas redes tecidas pelos fios da unidade, da fraternidade, da comunhão.
Mas hoje é também o dia de outro pequenino, de um menino, de nome Rayan, a criança do Norte de Marrocos, que tinha cinco anos e caíra num poço de 30 metros de profundidade e 28 centímetros de diâmetro. O mundo inteiro pôs os olhos num pequenino.
As imagens do resgate são, por isso, o melhor comentário ao Evangelho deste domingo para esta homilia que não tinha preparado. Vi uma imagem na net e logo me veio à mente: «lançai as redes», mesmo que a tarefa vos pareça “de loucos” e «farei de vós pescadores de homens».
Para quem não compreenda o que seja esta sagrada vocação de “pescadores de homens”, as imagens do resgate do pequeno Rayan são bem elucidativas: uma rede de colaboração, de pessoas, de serviços, tecida por uma rede invisível de oração, de solidariedade, de comoção à escala mundial, coloca-se ao serviço do resgate de uma só vida caída num poço.
Tirar alguém do fundo de um poço, da escuridão, da solidão, do abandono, do desespero, resgatar alguém do abismo, da tristeza, do desespero, não é mais do que isso de ser “pescadores de homens”, pessoas capazes de resgatar pessoas, de iluminar as suas vidas, de as trazer à luz, de as reconduzir à vida verdadeira.
Poderíamos dizer, como Pedro, «andámos vários dias e noites e não pescamos nada». À rede sobreveio uma criança sem vida. É verdade. Mas não morreu por desamor, não morreu só, não morreu sem saber que era amada, não morreu sem que nos ensinasse o valor de cada vida humana, essa vida que vale mais do que o ouro, mais do que o resto do universo inteiro.
O pequeno Rayan foi resgatado, sem vida humana, mas o seu resgate pôs em evidência o melhor da nossa humanidade, fixou os nossos olhos no que realmente mais importa, acordou-nos, despertou-nos e ressuscitou-nos, para aquilo que vale a pena: vida por vida.
Não é uma história com final feliz, como os contos de fadas, como não foi a de Isaías, a de Pedro e de Paulo e a de Jesus, na Cruz. Mas é uma história que hoje nos une e reúne, na comoção, na fraternidade, na gratidão. E que nos deve recordar que há crianças nos campos de refugiados da Síria e em tantas partes do mundo que precisam de resgate, que estão a morrer de fome, de frio.
É uma história que nos vem recordar que há hoje, tão perto de nós, muita gente atulhada no poço ou no mar das suas misérias e que precisa de uma rede de salvação, de irmãos e irmãs, que arrisquem tudo para resgatar e salvar as suas vidas, mesmo se parecem inúteis os esforços.
Quando descobrirmos que o resgate da vida dos outros é a única coisa que nos tira dos poços onde nos atulhamos e resguardamos, então teremos salvo também a nossa vida. Lancemos as redes, dêmos as mãos, por um mundo de irmãs, de irmãos.
Pe. Amaro Gonçalo, aqui

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