Já lá vão 54 anos. Fá-los em 2019.
Um familiar meu devia uma promessa a Nossa Senhora da Lapa. A pé, pão e água e sem falar. Manifestou vontade de que eu o acompanhasse. Uma outra pessoa amiga também devia uma promessa, a pé, mas sem os rigores do meu familiar.
Naquela altura, os peregrinos sabiam muito bem os percursos a seguir para tornar mais rápida a chegada e vencer os 52 km de distância.
Alta noite, partimos da terra em direcção ao Santuário. Amanheceu-nos em plena Serra da Nave. Já cansado, pezitos doridos, esgotados os temas de conversa com o único companheiro que podia falar comigo, como criança procurei algo que me aliviasse a caminhada. Um grande rebanho era também guardado por dois enormes cães cujo aspecto medonho retenho. Dois Serra da Estrela. Meti-me com os canídeos, provoquei-os. Assustado o meu familiar, que ia à frente, virou-se para trás e repreendeu-me: "Se eles te mordem….". De imediato caiu em si e deitou as mãos à cabeça. Lembrou-se da promessa, não podia falar.
Chegámos a Nossa Senhora da Lapa ainda a tempo de participar na novena da tarde. Igreja à pinha. Para infernar o sofrimento dos meus pés, tinha que continuar em cima deles, pois não havia onde me sentar. O pregador, que demorou cerca de uma hora no sermão, alternava o gongorismo da linguagem com longas tiradas em Latim. Tudo, logicamente, me passava ao lado e só atormentava mais o meu cansaço, a minha sede, a minha vontade de me sentar.
Finda a novena, o meu familiar correupara a sacristia, levando-me com ele, porventura para apresentar ao vivo o grande responsável pela quebra na sua promessa.
- Senhor cónego, pode fazer o favor de me atender?
- Senhor cónego!!! Ó homem,já sou Monsenhor há não sei quantos anos!
- Desculpe, senhor Monsenhor, não sabia. Peço perdão.
Não me recordo da sentença proferida pelo referido cónego-que-já-era-Monsenhor-há-não-sei-quantos-anos. Não sei se fui declarado réu, se a promessa fora ou não dada como cumprida.
Recordo sim que à noite lá conseguimos arranjar um cantinho numa loja de piso térreo, onde uma fina camada de palha acolhia os corpos cansados dos muitos peregrinos. Nunca "uma cama" me soube tão bem!
No dia seguinte, cedo, toca para a novena da manhã. Mas aí ziguezagueei pelo meio da multidão e fui-me sentar no estrado de um dos altares laterais, fazendo sinal com a mãozita aos meus acompanhantes que anuíram através de um gesto de cabeça. Maravilha, tapado pelas muitas pessoas, sentadito no estrado, aquilo é que foi uma soneca durante toda a novena!... O gongorismo e as tiradas em Latim do cónego-que-já-era-Monsenhor-há-não-sei-quantos-anos, funcionaram como embalo para o meu sono.
Ainda hoje me sabe bem o pão e o queijo da Senhora da Lapa que comemos a seguir à novena. Manjar mesmo, tal era a fomita!
Cumpridas as promessas, feitas as orações, comprado o queijo e o pão para trazer para a família, pusemo-nos de novo a caminho. Descemos pelo Granjal rumo à estrada nacional para apanhar a camioneta. Como os tempos eram de imensa poupança e a tal camioneta não aparecia, continuamos a dar corda aos sapatos, porque quanto menos andássemos de autocarro mais barata seria a viagem. Imaginem, recordo-o muito bem, apanhámos a camioneta em Vila da Rua.
O tempora, o mores!
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.