quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Vergonhosa a disputa sobre gestão de produto da solidariedade incendiária

A disputa começou cedo com um autarca da região Centro a criticar o facto de a UMP (União das Misericórdias Portuguesas) fazer a gestão dos donativos doados para auxílio às vítimas dos incêndios de Pedrogão Grande e concelhos limítrofes, esquecendo que estavam em causa contributos resultantes da mobilização dos cidadãos em torno dum espetáculo de solidariedade apoiado pelos três operadores de televisão generalista. Argumentava que os dinheiros dos contribuintes tinham de ser administrados pelos poderes públicos e não ficar nas mãos de privados. Porém, o promotor do espetáculo definiu previamente quem geria tais fundos – facto de que, dada a sua publicitação, todos os cidadãos contribuintes tiveram conhecimento mais que suficiente. Poderia ter sido de outro modo, mas foi assim que a organização decidiu e com a maior transparência. E o Presidente da UMP interveio nesse espetáculo agradecendo e informando como iria ser gerido esse bolo de donativos.

Mais tarde, Valdemar Alves deu o braço a torcer, aduzindo que a UMP tinha aderido ao fundo criado pelo Governo, sem explicar em que sentido e quais as consequências de tal adesão.

Agora, a comunicação social dá como nota de relevo a informação de que “autarcas questionam onde está o dinheiro das contas solidárias”. Com efeito, autarcas de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos advertem que solicitarão ao Ministério Público (MP) que perceba junto do Banco de Portugal (BdP) onde pairam os donativos destinados às vítimas dos incêndios, pois dizem desconhecer o destino do dinheiro que foi doado para as vítimas dos incêndios que afetaram a região, pelo que entendem necessária a intervenção do regulador.

Valdemar Alves, Presidente da Câmara de Pedrógão Grande, afirmou ao jornal “I” que não sabem do paradeiro desse dinheiro e que há de haver contas abertas que desconhecem, defendendo que cabia ao Estado ter controlado e distribuído essas verbas. O autarca admite que os donativos de contas abertas no estrangeiro por parte de emigrantes possam também ter sido desviados, embora essas contas “sejam mais difíceis de controlar”.

Suspeitando de que os donativos tenham sido desviados para outros fins, os autarcas interessados reuniram-se ontem, 5 de setembro, para discutir a questão. Entretanto, anunciaram que iriam solicitar ao MP que junto do BdP perceba para onde foi canalizado o dinheiro das contas solidárias. Segundo Valdemar Alves, só o dinheiro para a reconstrução das casas destruídas pelas chamas é que é do conhecimento dos responsáveis das câmaras.
É óbvio que esse dinheiro tem de ser do conhecimento da autarquia respetiva, porque a ela incumbe o ónus de aprovar a obra, de cujo projeto têm de constar, além da memória descritiva e justificativa, as diferentes peças desenhadas, bem como o orçamento ou, ao menos, uma estimativa orçamental. Por outro lado, se o Governo criou um fundo público, os autarcas que avoquem o direito de conhecer as contas desse fundo. Quanto aos donativos entregues a entidades privadas, estas devem, em primeiro lugar, geri-los de acordo com as necessidades debeladas ou entregá-los a entidades públicas competentes, se não tiverem essa capacidade de gestão; em segundo lugar, devem fazer espelhar na contabilidade da instituição respetiva a gestão dessas verbas e prestar contas a quem de direito – assembleia geral e, conforme os casos, à Conservatória de Registo Comercial ou ao Instituto de Segurança Social ou outra entidade competente; e, em terceiro lugar, ao poder judicial, se houver suspeitas ou indícios de desvio ou de má aplicação. De resto, francamente, cheira-me a eleitoralismo de proximidade que se torna vergonhoso por ser sintoma da ânsia pelo perfume do dinheiro, exprimir desconfiança sobre a honestidade dos outros, como se os autarcas fossem os únicos seres honestos, e configurar um ultraje às vítimas e um insulto aos gestores das entidades não públicas. E a que propósito vai o BdP, que supervisiona e fiscaliza bancos (e mal), fiscalizar a UMP, as Cáritas, as IPSS, etc.?
Por seu turno, a vice-presidente do PSD Teresa Morais veio exigir esclarecimentos adicionais ao Governo sobre os donativos privados às vítimas dos incêndios florestais da região Centro, em junho, considerando o valor apurado “ridiculamente baixo”. Disse a deputada socialdemocrata, em conferência de imprensa, na sede nacional do PSD, em Lisboa:
“A resposta é a de que foram submetidos termos de adesão de donativos de 3,2 milhões, estando concretamente transferidos 1,9 milhões. Este valor é – julgo que toda a gente anuirá – muito baixo e ridiculamente baixo, se comparado com as expectativas criadas pelos números que foram divulgados.”.
Segundo esta dirigente após questões colocadas em julho e agosto pelo PSD, a resposta do executivo surgiu agora por intermédio do Ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Vieira da Silva. E Teresa Morais insistiu:
“Esse número, que circulou na opinião pública e publicada, nunca teve confirmação oficial, mas a verdade é que ouvimos números que rondavam os 13 a 14 milhões [de euros]. Precisamente porque nunca foram confirmados pelo Governo e era importante saber qual o valor exato dos donativos dos portugueses, também das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, é que perguntamos qual o exato valor dos donativos de particulares.”.
As frentes de fogo, que afetaram as regiões de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos provocaram, pelo menos, 64 mortos e mais de 200 feridos. Por isso, desafiou:
“Cumpre ao Governo, que entendeu criar um fundo público, gerido por uma entidade pública e tutelado pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, explicar cabalmente aos portugueses que valores são estes, onde estão os restantes donativos, quem os está a gerir e em que termos”.
A dirigente do PSD considerou que a discrepância apontada “revela total descoordenação e incapacidade” do Governo em gerir os donativos privados, afirmando:
“O Governo entendeu que devia ser ele a gerir os donativos que os portugueses fizeram na sua expressão de solidariedade e, no entanto, responde agora que há 1,9 milhões [de euros] no fundo que para isso criou. É absolutamente imperioso que esclareça o valor dos restantes donativos e dê uma explicação acerca dessas quantias e qual o destino que lhes está a ser dado.”.

Também o Primeiro-Ministro veio a terreiro explicar-se, dizendo que o Estado, após a tragédia do incêndio de Pedrógão Grande, só organizou um fundo, o ‘Revita’, que tem 1,9 milhões de euros e é gerido conjuntamente com as autarquias e sociedade civil.

Falando aos jornalistas em Lisboa, antes da cerimónia de entrega do Prémio Champalimaud de Visão, presidida pelo Chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa, o líder do executivo declarou, sobre a controvérsia em torno da aplicação das verbas doadas por cidadãos às vítimas do incêndio de junho em Pedrógão Grande, no distrito de Leiria:
“Depois do extraordinário movimento da sociedade civil, é essencial que os portugueses tenham toda a informação sobre o destino das verbas que doaram generosamente”.
E explicou:
“As pessoas deram o dinheiro às entidades que entenderam. O Estado organizou um fundo, o ‘Revita’, que até ao momento só recebeu donativos no montante total de 1,961 milhões de euros. Relativamente às verbas do fundo ‘Revita’, as intenções de doação chegam até 4,9 milhões de euros, apesar de, efetivamente, só termos recebido até agora 1,9 milhões. Sendo um fundo público, é gerido em conjunto com as autarquias e com a sociedade civil.”.
Especificando a forma de gestão e funcionamento do “Revita”, António Costa apontou que o Conselho de Administração é constituído por: um elemento do Instituto da Segurança Social, o Presidente da Câmara de Castanheira de Pera (em representação das autarquias) e o Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Pombal (este representando as entidades da sociedade civil). São estas três pessoas que gerem esse 1,9 milhões de euros.
De acordo com o líder do executivo, a verba de 1,9 milhões de euros destina-se prioritariamente a dois objetivos: o apoio à reconstrução das habitações, onde cerca de 19 já tem obras em curso ou concluídas após financiamento deste fundo; e o apoio a agricultores cujos prejuízos se situam entre 1053 e cinco mil euros”. Interrogado sobre as críticas feitas ao Governo pelo PSD a propósito do destino dos donativos para as vítimas do incêndio de Pedrógão Grande, Costa contrapôs que, no atinente ao Estado, “as regras são totalmente transparentes”. E alegou:
“É bom que se esclareça que grande parte dos donativos não foi recebida pelo Estado. Por exemplo, a RTP, que promoveu um espetáculo e recebeu bastante dinheiro, entregou-o a uma outra entidade – e só a RTP pode explicar o destino que lhe deu.”.
Aqui baralhou-se se não queria referir a conta solidária que a RTP abriu e atribuiu à Misericórdia de Pedrógão. Mas ainda, segundo Costa, para que ficasse claro que o “Revita” não era um fundo do Governo, o executivo decidiu avançar para uma gestão tripartida, incluindo as entidades representativas da sociedade civil, sustentando:
“O Estado só responde pelo dinheiro que lhe foi confiado e, nesse sentido, para que não haja mais dúvidas, pedi ao Ministro da Solidariedade [Vieira da Silva] que publicasse no site do fundo ‘Revita” um quadro com o montante doado e destino que está a ser dado a cada uma das verbas”.
O Fundo “Revita”, a que se refere Costa, foi criado para gerir os donativos para apoio às vítimas do incêndio que começou em 17 de junho, em Pedrógão Grande, e conta com mais de 20 entidades aderentes, num total de cerca de 2 milhões de euros já recebidos, como refere um comunicado enviado à agência Lusa pelo MTSSS (Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social), que afirma:
“Até à data, aderiram ao fundo mais de duas dezenas de entidades, com donativos em dinheiro, em espécie e em prestação de serviços, tendo sido entregues donativos em dinheiro no valor de cerca de 2 milhões de euros”.
Segundo o comunicado, os donativos apenas são entregues ao “Revita” por decisão dos doadores, sendo que o Governo e o Conselho de Gestão do fundo têm também cooperado com a Cáritas Diocesana de Coimbra, a UMP e a Fundação Calouste Gulbenkian, que agregaram outros donativos. Por outro lado, o MTSSS explica que o fundo “Revita” foi criado para gerir os donativos entregues no âmbito da solidariedade demonstrada, “em estreita articulação com os municípios de Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos e Pedrógão Grande”, frisando:
“A competência do Conselho de gestão do ‘Revita’ cinge-se aos donativos entregues ao Fundo ‘Revita’, sendo que estes donativos se destinam prioritariamente à reconstrução das habitações afetadas pelos incêndios e ao seu apetrechamento, bem como ao apoio aos agricultores”.
Questionado pela agência Lusa, o MTSSS afirmou que “não pode responder sobre outras contas solidárias e/ou outros donativos, uma vez que se trata de dinheiro de entidades privadas”, não sendo responsável pela abertura ou fiscalização dessas mesmas contas.
A terreiro vem superiormente o Presidente da República afirmar que é preciso explicar aos portugueses o que lhe explicaram a ele: “de onde veio o dinheiro para fazer frente à tragédia, quem é que o está a gerir, como e quanto”. E, apelando a que sejam corrigidos eventuais “lapsos, duplicações ou insuficiências”, pediu que se “evite, nas três semanas que faltam [para as eleições autárquicas] converter [este assunto] em campanha eleitoral”. Mais afirmou que “isto tem de ser explicado por quem, a nível local, tenha uma visão de coordenação”.*
O BE julga inacreditáveis problemas com os donativos, asserção que explicito por relevante. Diz Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda (BE):

“As entidades privadas a quem toda a população de boa-fé entregou donativos, têm de saber explicar o que é que estão a fazer com esses donativos e, se houver algum problema, naturalmente as entidades competentes terão de investigar”.

A coordenadora do BE afirmou hoje, dia 6 de setembro, que acha inacreditável que haja problemas com os donativos para as vítimas dos incêndios de Pedrógão e reclamou explicações das entidades privadas que gerem fundos. Considerou ela à margem duma visita ao Complexo do Cachão, em Trás-os-Montes:
“Eu acho inacreditável que possa haver problemas naquilo que é pôr a generosidade de toda a população ao serviço de quem precisa de ser ajudado”.
Por isso, acrescentou:
“As entidades privadas que têm esses fundos devem explicar, porque o Governo já deu as explicações e não é no fundo público que há problema, é nas entidades privadas”.
Catarina Martins reiterou que “seria uma matéria de bom senso” as entidades privadas a quem foram entregues donativos darem explicações sobre o que recolheram e o que estão a fazer com o dinheiro, pois “ninguém no país compreende que não expliquem”. E, recordando que “o Bloco de Esquerda tem tido uma posição sobre esta matéria de uma enorme prudência”, afirmou:
“Nós temos dito que nestas questões do apoio social, das respostas às comunidades, é muito importante a presença do Estado. Eu julgo que este momento prova um bocadinho essa necessidade.”.
Para a coordenadora do BE, “com todas as dificuldades que possam existir com a presença do Estado, as pessoas compreendem bem que há mais escrutínio nos fundos públicos e que nos privados é que não está a haver esse escrutínio”. Pelo que isso deve-nos fazer pensar como é que estamos no terreno e como é que esta solidariedade é efetuada. E, considerando que “as entidades privadas têm de ser fiscalizadas se houver problemas” e que “têm a obrigação de dar explicações porque pediram donativos a toda a população”, declarou:
“E, sobretudo, as pessoas que foram vítimas de tragédia devem ser apoiadas e eu acho que quem foi vítima da tragédia e vê agora estas notícias, deve-se sentir insultado; não é assim que se devem tratar as pessoas”.
A líder do Bloco, para quem é “absolutamente lamentável a forma como este assunto está a ser tratado” concorda com o apelo de não aproveitamento político feito pelo presidente da República, vincando que “essa foi a opção do Bloco de Esquerda desde o primeiro momento”.
Embora Catarina queira ver o Estado a supervisionar (e até a gerir) toda a matéria atinente a dinheiros e ações respeitantes à solidariedade (de que muitos discordam), tem a prudência de não exigir que as entidades privadas a quem os cidadãos confiaram verbas não as entreguem ao Estado. Exige – e bem – que sejam fiscalizadas em caso de suspeita e entende que essas entidades deveriam arranjar forma de prestar contas à sociedade pela forma quantificada e qualificada como administram tais fundos.
Por mim, não tenho dúvidas de que é uma exigência plausível, mais do que pretender controlar ou mesmo abocanhar todos os donativos dos cidadãos. O Presidente disse o que tem de ser dito: explicação de tudo, segundo a responsabilidade de cada entidade (pública ou privada). E penso que, embora os privados não sejam obrigados a passar além do que foi dito acima sobre prestação de contas, bem como sobre a fiscalização em caso de dúvidas e o dever de cooperação pública, parece-me bem que inventem outras formas de se explicarem publicamente. Isto, sem exageros. Por exemplo, dispenso-os de me informarem em que pessoa, animal, casa ou planta investiram os meus 60 cêntimos +IVA (de chamada telefónica) ou o meu bilhete no Meo Arena. Entendidos?
2017.09.06 – Louro de Carvalho

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