1- Não é só no futebol que no fim ganham os alemães. É no futebol, no atletismo, no automobilismo, no andebol, na equitação, no ski. É no desporto, na música, na literatura, na arquitectura, na construção de carros, de electrodomésticos, de máquinas industriais, etc, etc. Podemos gostar ou não, podemos até desdenhar, mas a verdade é esta: no fim, ganham os alemães. E ganham, porquê? Porque trabalham mais, porque se focam nos objectivos, porque valorizam os resultados. Se alguém quiser entender por que razão a Alemanha está farta dos países do sul da Europa, ponha-se na pele de um alemão. E compare a selecção alemã, campeã do mundo, com, por exemplo, a portuguesa.
A selecção alemã que foi ao Brasil não tinha vedetas nem pequenas, nem médias, nem grandes. Não se davam ares de vedetas, nem fora nem dentro do campo. Umas vezes, esmagaram e fascinaram com o seu futebol de carrossel demolidor, outras vezes — como na final — correram, lutaram, sofreram, sangraram e, no fim, ganharam. Nenhum jogador quis dar nas vistas por outra razão que não fosse jogar futebol. Ali não havia ninguém com tatuagens, com penteados ridículos, com figurinos tipo Raul Meireles, com brincos nas orelhas, com pose de deuses inacessíveis de auscultadores enfiados nos ouvidos, fingindo-se alheios a tudo o que os rodeava, como se fossem superiores à gente comum. Não, os alemães passaram pelo Brasil confraternizando, querendo ver e saber, curiosos e contentes por ali estarem — tão diferentes dos nossos heróis do mar, fechados para o mundo em hotéis-fortaleza, onde só entravam cabeleireiros, tatuadores e agentes. Os alemães não passaram as conferências de imprensa a debitar lugares comuns e frases feitas sem conteúdo, próprias de quem jamais foi visto com um livro, uma revista ou um jornal na mão e passa os tempos livres a debitar selfies e banalidades nas redes sociais, imaginando-se o contra do mundo. Os alemães mandaram ao Brasil uma verdadeira embaixada, para servir o futebol e honrar o seu país, enquanto nós mandámos um grupo de homens mimados e convencidos, comandados por dirigentes que não lhes souberam exigir que estivessem, em todos os aspectos, à altura da responsabilidade. Mas, como em tudo o resto que fazem, os alemães também mandaram um grupo de jogadores que se portaram como verdadeiros profissionais, que trabalharam e treinaram no duro, enquanto que nós mandámos uma excursão de rapazes que se convenceram que os penteados e as tatuagens, por si só, conseguem ganhar jogos ou então ficar na fotografia que parece bastar-lhes. Não é por acaso que o campeonato alemão tem estádios cheios e que o público dá por bem empregue o seu tempo e o seu dinheiro, enquanto que o principal do nosso campeonato é jogado em estádios vazios e vivido sobretudo nos programas televisivos dos dias seguintes, a discutir se foi bola na mão ou mão na bola ou se a entrada de uma equipa em campo 2 minutos e 45 segundos depois da hora marcada condicionou ou não decisivamente o resultado de outro jogo. Nós discutimos, eles jogam. Nós tatuamos, eles treinam. Nós penteamos, eles correm. Nós somos recebidos e pré-condecorados pelo Presidente antes de começar, eles são apoiados na bancada pela chanceler quando chegam à final. Nós somos heróis antes de partir, eles são vencedores depois de ganharem. Não é por acaso que, desde que me lembro e tanto quanto me lembro, só dois jogadores portugueses (Paulo Sousa e Petit) jogaram no campeonato alemão e só um jogador alemão jogou no campeonato português (Enke).
Não perguntem o que é que os alemães têm. É toda uma sociedade fundada no trabalho, no mérito, na responsabilidade, nos resultados. Goste-se ou não, isto não tem nada a ver com o fado. É outra cultura, é outra coisa.
2- Agora, todos batem no ceguinho do Scolari. Agora, até se atrevem a passar finalmente o registo da célebre conferência de imprensa de Scolari, em 2004, em pleno Europeu, em que ele insulta ordinariamente uma jornalista, sem que os seus colegas reajam — e cujas imagens ou relato textual eu jamais tinha visto. Agora, começam a perceber que Scolari não nos levou ao 2º lugar no Euro-2004; ele perdeu, em casa, um Euro imperdível. Agora, percebem que os seus sucessivos falhanços posteriores — a liquidar o Chelsea de Mourinho ou a descer o Palmeiras à segunda divisão — não foram acidentes de percurso e que ser campeão do mundo com o Brasil em 2002 não era assim tão difícil. Agora, começam a desconfiar que a sua célebre arte da motivação não era mais do que um cocktail de sorte, Senhora do Caravaggio, conversa mole para fracos espíritos e patriotismo de pacotilha — que ele aproveitou, aqui e no Brasil, como uma excelente oportunidade para negócios privados de publicidade. Mas que, no fundamental, o homem limita-se a escolher um grupo de discípulos obedientes a quem prega os seus sermões de psicologia barata, convence-os de que a sua técnica é genial (e que, em absoluto, dispensa o talento individual deles) e que, quando ganha, tudo se deve ao grande Felipão. Mas quando, na hora de verdade, tudo corre mal — quando consegue perder duas vezes com a mesma e indigente Grécia no Euro-2004 ou quando encaixa 7-1 da Alemanha neste Mundial — ele puxa das estatísticas que lhe convêm, esquecendo as outras, e declara, cheio de lábia, que tudo o que de mal lhe aconteceu nos últimos anos foram dez minutos contra a Alemanha.
Na qualidade de quem, antes mesmo de começar o Euro-2004, logo embirrou com o homem, desconfiou do treinador e o escreveu, de quem foi, aliás, pessoalmente ofendido por ele, de quem várias vezes teve de explicar no Brasil porque razão o achava um vendedor de banha da cobra, de quem teve a sorte de aqui publicar na manhã do jogo contra a Alemanha que o Brasil de Scolari não jogava nada e que nessa noite iríamos ver o que valia contra uma equipa a sério, confesso que a prova dos nove me soube deliciosamente. Os 7-1 contra a Alemanha e os 3-0 contra a Holanda souberam-me que nem doce de amoras. Só tenho pena que o Brasil, o Brasil inteiro, tenha pago este preço pela incompetência, a arrogância e a pesporrência do Grande Felipão. Um treinador que consegue transformar o Thiago Silva num passador, o David Luiz num bebé chorão, o Hulk numa nulidade e o Oscar numa anedota, e que vive à espera que o Neymar lhe resolva o assunto é, obviamente, um incompetente. Mas o burro é ele? Não, o burro é a imprensa que sempre andou com ele nas palminhas, por medo e por reverência.
Três quartos dos seleccionadores do Mundial despediram-se após este. Uns porque consideraram a sua missão ou o seu ciclo cumpridos, outros porque falharam os objectivos. Entre estes últimos, Scolari e Paulo Bento são dois que não vêem motivos para se irem. Um, porque considera que só falhou um jogo em que as coisas correram mal, outro porque acha que só falhou dez minutos de um jogo. Não é a única parecença entre eles, mas é eloquente: as razões porque falharam são as mesmíssimas razões pelas quais só eles não percebem que falharam e que nenhum futuro diferente se fará com eles.
3- Até entrar nas eliminatórias, este foi o melhor Mundial de que me lembro. Mas, depois, tudo mudou. Como sempre disse, um Mundial jogado no final da época europeia, com 32 equipas, em que os finalistas têm de disputar 7 jogos de 4 em 4 dias, serve ao negócio ganancioso da FIFA, mas não ao futebol. O Alemanha-Brasil foi a excepção, um jogo que sai uma vez num século; o normal é o Argentina Holanda das meias ou o Alemanha- Argentina da final: dois jogos penosos, sofridos, soporíferos. O Mundial do Brasil merecia um melhor final.
abola, crónica de miguel sousa tavares, li aqui
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