Como nós nos desviámos das pautas da música de Deus! Como nos transviámos! Mas podemos sempre regressar, procurar os caminhos ajustados, acertar processos, dado que Deus nos deixou um mapa preciso e precioso na nossa inteligência, vontade, sensibilidade, capacidade de discernir e decidir. Quero dizer: nem fideísmo nem cientismo. O fideísmo é aquela maneira de viver pensando que a fé não é da ordem da razão, mas apenas do sentimento, um assentimento do sentimento, portanto e só. Em nome desta conceção de fé cega e fechada, quantos desastres aconteceram ao longo da história, e ainda hoje toldam o olhar de grupos extremistas radicalizados! O cientismo consiste em entregar todas as chaves da vida e da nossa casa à ciência e à técnica, vendo nelas «o deus deste mundo» (2 Coríntios 4,4), que resolve todos os nossos problemas. Também este modo de ver e de viver se revelou desastroso e abriu incontáveis valas comuns. Serve aqui o juízo de Max Horkheimer e Theodor Adorno, com data de 1947: «O iluminismo, no sentido mais amplo de pensamento em contínuo progresso, perseguiu desde sempre o objetivo de libertar os homens do medo e de os tornar donos. Mas a terra inteiramente iluminada resplandece, ao contrário, de triunfal desventura!».
Serve este estendal para olharmos com mais atenção para este tempo marcado pela tempestade da Covid-19, que praticamente sem aviso nos caiu em cima, arrumando para o lado as nossas agendas, fechando as nossas portas e deixando a nu as nossas limitações. Dizem uns: afinal, Deus e as Igrejas, a fé e a oração não servem para nada, não nos trazem nenhum proveito; dizem outros: e nós que pensávamos que a ciência resolveria todos os nossos problemas! Nem os crentes verdadeiros perderam os seus créditos, nem o saber dos cientistas foi pela água abaixo! O mapa e a bússola para os novos caminhos a trilhar não estão só nas mãos dos crentes que rezam de verdade ou dos cientistas que se esmeram nas suas pesquisas. Deixou-os Deus nas mãos do ser humano, do crente e do sábio, e todos devem lutar, cada um com os dons que recebeu, para tornar este mundo mais belo e saudável e habitável. Deus acredita em nós: por isso, ao criar-nos livres, inteligentes e voluntariosos, repartiu connosco o seu poder e a sua sabedoria, fundando a oração e a ciência, e até não nos impedindo de podermos fazer mau uso dos seus dons. Ao criar-nos assim, responsáveis e livres, convenhamos que Deus correu riscos, mas Deus acredita em nós, confia em nós. Lutemos, pois, com a inteligência e o coração, com a oração; lutemos, pois, com os dados por Deus dados, nos hospitais e laboratórios. De resto, os santos sempre souberam arrastar o mundo para o bem e o bem para o mundo, vergando, para tanto, o coração de Deus. E os verdadeiros cientistas, crentes e não crentes, mas sempre sensatos e sensíveis e humildes, a cada passo são surpreendidos com o incrível e o ainda não explicável!
É bem verdade, podem testemunhá-lo os santos e os verdadeiros homens da ciência: o pão e o sonho que alimenta a vida, Deus o dá aos seus amigos até durante o sono (Salmo 127,2; cf. 1 Reis 3,5). Eu próprio disse e escrevi a meio do ano passado de 2019: «Sendo a vida, então, um contínuo estado de emergência, o bem que deve ser feito agora assume um carácter de extrema urgência». Têm-me perguntado: como é que eu disse e escrevi isto naquela altura, quando ainda não se pressentia nada? Se não se via nada, era por causa do escuro que fazia. Tenho dito e escrito muitas vezes que atravessamos “a noite do mundo”. E de noite, pouco se vê. É preciso perguntar com Isaías: «Sentinela, quanto resta da noite? E a sentinela responde: Já desponta a manhã, mas é ainda noite» (Isaías 21,11-12). É, portanto, necessário que nos postemos sobre a fresta da porta entreaberta (Salmo 106,23), para que algum pingo de luz possa ainda alumiar o nosso olhar, e para impedirmos que a porta se feche.
D. António Couto
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.