Que posso esperar?
quinta-feira, 7 de novembro de 2024
Bispos. Padres e Leigos...Há que mudar, há que mudar, há que mudar... Todos, todos, todos!
sexta-feira, 1 de novembro de 2024
Os pontos altos do documento final do Sínodo
I – Descentralização
Começo por falar da descentralização. Eu já tinha dito neste vídeo que a grande novidade deste processo sinodal seria a aposta na descentralização. Julgo que o documento confirma isso mesmo. Chamo a atenção para os parágrafos do 119 até ao 135, que a meu ver contêm o que é mais interessante sobre este aspecto.
Como eu tinha referido, o parágrafo 119 apela à formação de províncias eclesiásticas e agrupamentos nacionais e continentais de igrejas. No 126 refere mesmo as Assembleias Continentais que existiram durante o processo sinodal como exemplos a seguir. Mais do que apenas grupos continentais, contudo, o parágrafo 120 fala de grupos regionais de interesses comuns, dando como exemplo a Amazónia, a Bacia do Congo, ou a zona do Mediterrâneo, sendo que este último abrangeria mais do que um continente. Estes organismos não devem ser, porém, meros ajuntamentos de bispos. Pede-se, no parágrafo 127, o envolvimento de representantes da diversidade do povo de Deus, o que naturalmente envolverá leigos. Aqui, como aliás ao longo de todo o documento, apela-se também ao envolvimento de representantes de outras Igrejas cristãs e até certo ponto de representantes de outras religiões ou grupos sociais relevantes. O factor ecuménico e inter-religioso são uma importante marca deste texto. Antevendo que haverá dioceses ou conferências episcopais que, por diversas razões, têm dificuldade em participar nestes organismos, incumbe-se a Santa Sé de ajudar a encontrar soluções e a agilizar essa participação (parágrafo 128).
O parágrafo 129 é muito interessante, na medida em que apela à realização regular de Concílios Particulares Plenários ou Provinciais. Um Concílio Particular Plenário é um encontro de representantes de todas as dioceses de uma mesma conferência episcopal, no nosso caso abrangeria Portugal todo, e um provincial será um encontro de âmbito mais regional. É natural que, como eu, nenhum de vós saiba o que é um Concílio Plenário nacional, uma vez que o último que se realizou em Portugal foi em 1926!! Contudo, o documento pede que sejam realizados, ou “celebrados” com regularidade. Será que isto irá acontecer?
Parece-me evidente que em Portugal, como em quase todo o mundo, estes concílios acabaram por dar lugar aos plenários da Conferência Episcopal. A diferença é que o plenário da Conferência Episcopal só reúne bispos, e os concílios são muito mais alargados, devendo envolver, segundo o Código de Direito Canónico, vigários gerais e episcopais, superiores de institutos religiosos, reitores de universidades católicas, decanos das faculdades de teologia e de direito canónico, alguns reitores de seminários e ainda “presbíteros e outros fiéis, mas de tal maneira que o seu número não exceda metade” dos compostos pelos vigários, superiores e reitores de universidades”. Ou seja, o concílio particular é uma assembleia muito mais alargada de representantes da igreja. Será que isto vai acontecer?
O documento final refere ainda, de forma categórica, que o Papa é, e continua a ser o garante da unidade da Igreja (#131), mas apela à aplicação do princípio da subsidiariedade, usando o termo “sã descentralização” (#134).
Finalmente, no parágrafo 135 insiste-se que os dicastérios do Vaticano devem consultar as Igrejas locais antes de publicar documentos importantes – Fiduccia Suplicans, anyone? – e, de forma algo estranha, diz-se que “é importante, para o bem da Igreja, que os membros do Colégio dos Cardeais se possam conhecer melhor e que se promovam os elos de comunhão entre eles”. Não faço ideia porque é que isto surge no mesmo parágrafo, mas não deixa de ser uma questão importante, uma vez que o hábito do Papa Francisco de nomear cardeais das periferias, sendo importante como forma de recordar que todos os católicos valem e merecem ter voz em Roma, também pode ser problemática. Basta pensar que quando houver um consistório, os cardeais de locais mais isolados chegarão a Roma sem saber como funciona a máquina, sem conhecer ninguém, sem falar a “linguagem” burocrática. Isto deixa-os à mercê de manipulação por diferentes grupos de interesse que, nessa altura, estarão a tentar contar espingardas. O apelo Assembleia Sinodal pode ser uma resposta a este perigo.
II – Envolvimento dos leigos
Há vários pontos no documento de apelo ao envolvimento dos leigos na vida corrente da Igreja. Olhemos para alguns deles.
No parágrafo 66 sublinha-se que todos os baptizados são chamados à missão, mas diz que “nem todos os carismas devem ser configurados como ministérios, nem todos os baptizados têm de ser ministros, nem todos os ministérios têm de ser instituídos” e, mais à frente, “uma Igreja missionária sinodal encorajará mais formas de ministério laical, isto é, ministérios que não requerem o sacramento da Ordem, e não apenas na esfera litúrgica”. Traduzindo: não é preciso salamaleques. Se a Maria tem jeito para acompanhar velhinhos, ajudem a criar um espaço para a Maria poder acompanhar velhinhos. Não é preciso um decreto, nem um cerimonial, nem uma farda. Se o António lida bem com miudagem e conhece os ensinamentos da Igreja, metam o António a dar catequese, ou a acompanhar um grupo de jovens. Facilitem. Também assim se combate o clericalismo.
O parágrafo 70 contém, de forma quase despercebida, uma verdadeira caixa de pandora. Depois de falar sobre a importância do papel dos bispos, lê-se. “É por isso que a Assembleia Sinodal deseja que o Povo de Deus tenha uma voz maior na escolha dos bispos”. Como? Não faço ideia. Mas estou muito curioso para saber se esta pequena frase se vai tornar letra morta, ou se vai produzir algum efeito.
Há depois umas passagens bonitas e interessantes sobre as fragilidades dos bispos e dos padres, de que os leigos devem tomar nota. “É importante ajudar os fiéis a evitar ter expectativas excessivas e irrealistas do bispo, recordando que também ele é um irmão frágil, exposto à tentação, a precisar de ajuda como todos nós. Uma imagem idealizada do ministério do bispo pode ser um obstáculo” (#71) e, mais à frente, sobre os padres que “também precisam de ser acompanhados e apoiados, sobretudo nas fases iniciais do seu ministério, bem como em alturas de fraqueza e de fragilidade” (#72) referindo-se no parágrafo 74 “as dificuldades bem reais que os pastores enfrentam no seu ministério. Essas referem-se sobretudo a um sentido de isolamento e solidão, bem como sentirem-se assoberbados pelas expectativas”. Traduzindo, novamente: leigos, estejam atentos aos vossos párocos, cuidem deles! Como é que se detecta que um padre está a atravessar um período de fraqueza e fragilidade? Estando próximo. Sejam próximos dos vossos padres!
Temos depois, no parágrafo 77, um apelo mais explícito à participação dos leigos e das leigas na vida da Igreja “explorando novas formas de serviço e ministério em resposta às necessidades pastorais do nosso tempo num espírito de colaboração e de corresponsabilidade diferenciada” que pode abranger “processos de discernimento e todas as fases de tomada de decisão” apelando a um “maior acesso dos leigos e das leigas a posições de responsabilidade em dioceses e institutos eclesiásticos, incluindo seminários, faculdades e institutos teológicos”.
Julgo que neste ponto a situação já esteve bem pior. Tenho visto muitos avanços em relação à expectativa de que o padre seja não só pároco como CEO de N instituições de solidariedade social, responsável dos recursos humanos e gestor. Hoje em dia, graças a Deus, vemos cada vez mais leigos a ocupar essas funções. Mas não deixa de haver dificuldades importantes a referir. A primeira dificuldade é financeira. Uma coisa é meter o padre a acumular funções, outra é ter de pagar um ordenado justo a vários leigos para fazer a mesma coisa. A segunda tem a ver com a disponibilidade dos leigos para assumir papéis em regime de voluntariado. Todos queremos uma maior voz para os leigos nas tomadas de decisão da paróquia, mas nem todos temos paciência ou tempo para ir a mais uma reunião a meio da semana, ou às 16h de um domingo. Acrescente-se a isto que muitas vezes os que manifestam maior vontade de participar são precisamente os que não queremos lá, ou a mentalidade muito típica de Portugal, de que o voluntariado não é uma obrigação, por isso se não me apetece ir não vou, porque nem me pagam. Tudo obstáculos que é necessário ultrapassar.
Termino esta secção com o parágrafo 92 que recorda os limites deste envolvimento dos leigos, sublinhando que “a autoridade do Bispo, do Colégio Episcopal e do Bispo de Roma em relação à tomada de decisão é inviolável, estando enraizada na estrutura hierárquica da Igreja estabelecida por Cristo” e que “na Igreja, o elemento deliberativo é levado a cabo com a ajuda de todos, e nunca sem aqueles cujo governo pastoral lhes permite tomar decisões, em virtude do seu cargo”.
III – Transparência
Esta secção será bastante mais curta, mas achei importante incluí-la e vou até inverter a ordem dos parágrafos como são apresentados no documento.
Assim, no #98 lemos que “a transparência e a responsabilização não devem apenas ser invocadas em casos de abusos sexuais, financeiros e outros. Estes princípios também dizem respeito ao estilo de vida dos pastores, ao planeamento pastoral, aos métodos de evangelização e à forma como a Igreja respeita a dignidade humana, por exemplo, em relação às condições laborais no seio das suas instituições”. Muito importante!
E olho agora então para o #96 onde se lê que “a transparência, no seu sentido evangélico correcto, não põe em causa o respeito pela privacidade e confidencialidade, a protecção das pessoas, a sua dignidade e os seus direitos”.
Usando aqui um exemplo que nos será familiar, quando uma diocese recebe uma denúncia por situação de abuso sexual e ela é considerada credível, a Igreja deve, a meu ver, fazer um comunicado a dar conta disso mesmo. Mas não é necessário que esse comunicado refira o nome do acusado, ou da vítima, nem detalhes que permitam pôr em causa o seu direito ao bom nome e à privacidade. Mais tarde, em caso de condenação, poderá ser desejável ou necessário divulgar alguns desses detalhes, mas o importante é sublinhar que é possível conciliar a transparência e o direito à privacidade e confidencialidade.
Sublinho apenas que este parágrafo 96 inclui uma referência pertinente ao sigilo absoluto e inviolável do selo da confissão, isto numa altura em que ouvimos cada vez mais pessoas a colocar em causa esse princípio.