Um dos fenómenos que mais me inquieta, em quase trinta anos de padre, é o modo como são tratadas (ou destratadas) as pessoas aquando da sua morte. Sobretudo no que diz respeito ao funeral católico. Até porque creio piamente que a sua salvação/condenação não depende de as levar ou não à igreja, ter ou não “missa de corpo presente”… Duas dúvidas existenciais (e provocatórias):
(1) Se o defunto, ao longo da sua vida, nunca quis nada com a igreja, não participava na Eucaristia e da comunidade, vivia como ateu (agnóstico ou pagão), por que é obrigado pela família a ter funeral religioso? Não será uma falta de respeito para com o próprio defunto? Se no exercício da sua liberdade, optou por viver afastado, agora que não fala, não anda, não vê e não ouve (nada pode decidir) outros decidem por ele, contra aquilo que foram as suas escolhas terrenas e os seus critérios de vida? Se fosse comigo, antes de morrer, deixaria bem claro que não permitiria tamanho destrato; ou, se fosse minha responsabilidade organizar o funeral desse defunto, jamais aprovaria essa hipótese. Sempre por respeito ao defunto e consciente de que Deus não faz depender a sua salvação/condenação deste “evento social”.
(2) A segunda dúvida prende-se com a sempre rápida canonização dos defuntos: “era boa pessoa”. Nessora, acontece uma milagrosa amnésia coletiva que leva a esquecer as condutas pouco recomendáveis de alguns defuntos (violento, corrupto, adúltero/infiel, vigarista, mentiroso, viciado, má língua, avarento, preguiçoso, etc.) e vão debitando um rosário de elogios e virtudes que, em alguns casos, me obriga a confirmar se, no caixão, está mesmo o defunto que consta do funeral. Por haver o risco de “errar no alvo” recomenda o Ritual das Exéquias: «Depois do Evangelho deve haver uma breve homilia, evitando, porém, a forma e o estilo de um elogio fúnebre» (nº 79).
É um facto: há muitos a viver longe de Deus, agarrados às suas verdades, paixões, caprichos e prazeres. Vidas mundanas. Não querem saber de Deus, nem da Igreja nem da Missa ao Domingo. Escolhas. Decisões. Quando morrem, mesmo que raramente tenham posto os pés na igreja (e até se rirem e criticarem quem o faz), a família obriga-os a ir. Como se, passar por lá num caixão carregado aos ombros, fosse livre trânsito para o Céu!
(P. António Magalhães Sousa), aqu
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