Estes dias, mediante algumas leituras e conversas informais, despertaram-me atenção e causaram-me perplexidade os modos como, em ambientes eclesiais, se apresenta a vida do jovem Carlo Acutis, que, em breve, será canonizado. Na verdade, evitando mal-entendidos, não duvido da santidade deste jovem que viveu, com bondade imensa, a sua curta vida. Todavia, tal não invalida que nos possamos interrogar acerca do modo como apresentamos a santidade ao jovem hodierno.
Autoestradas para o Céu?
Na página oficial deste jovem, destacam-se recursos sobre algumas mostras itinerantes sobre Os apelos da Virgem, aparições e santuários marianos no mundo; Anjos e Demónios e Inferno, Purgatório e Paraíso. De imediato, interroguei-me: serão estes temas os mais atrativos e reconhecidos como críveis de sentido para os jovens de hoje? Na verdade, não estou a negar a importância destes temas para a vida cristã, apenas me interrogo sob a forma como os apresentamos como conditio sine qua non para a santidade. A minha reflexão não se detém no caminho de seguimento de Jesus Cristo percorrido por este jovem, mas naquilo que se anuncia em determinados meios eclesiais acerca da sua vida.
Quando se afirma que a eucaristia é a autoestrada para o céu ou que vamos diretos para o Céu se nela participarmos todos os dias, mediante a comunhão e adoração, não se estará a resvalar para uma visão redutora ou simplista? Não é também a eucaristia o sacramento da comunidade humana que estamos chamados a construir? Não se nega o que é dito, mas não nos estará a escapar que o pão eucarístico se parte para que, pelo dom de nós próprios, isto é, eucaristizando-nos, seja repartido por todos?
Da missa à missão
A eucaristia – encontro dos fiéis com Jesus Cristo, percetível pelos sentidos -, enquanto mistério da salvação de toda a Humanidade, é o modo como essa dádiva divina incarna no nosso mundo, originando o corpo eclesial como sua mediação. A eucaristia é uma ação em favor da humanidade na medida em que é a atualização da ação salvadora de Deus em favor da humanidade. Quando nos deixarmos atravessar por tão desarmante dádiva patente no gesto pascal de Jesus, germinará em nós a atenção generosa, a resposta responsável, a fecundidade criadora, a inteligência sensível e a simplicidade de uma vida elementar.
Portanto, quando afirmamos que, se participarmos e comungarmos, todos os dias, na Eucarsitia vamos diretos para o Céu, não nos estará a escapar que a eucaristia é sacramento da comunidade humana a construir. Na ação celebrativa não somos transfigurados em pão para que todos nos tornemos dom? Aliás, como patenteia Alexandre Freire Duarte os sacramentos recordam-nos que nada na vida cristã é somente para nós. Na eucaristia, os frutos objetivos são comunicados na celebração, mas a sua fruição subjetiva implica a vivência eucarística, porque este sacramento torna-se fecundo quando nos entregamos eucaristicamente aos demais.
Na eucaristia, dá-se o reconhecimento atualizador de Deus que salva em Jesus Cristo, dando-se em alimento para nos unir a Ele, unindo-nos aos outros. Enquanto Ele se dá na pequenez do pão das nossas dores e no vinho nas nossas alegrias, abre tempos e espaços para as palavras que haveremos de dizer, para os gestos que haveremos de fazer, para as obras que haveremos de criar e para as relações que haveremos de ser, no concreto do nosso quotidiano, como indivíduos e como comunidade de crentes (cf. José Frazão).
Um kit para a santidade
No referido site, há um kit para a santidade, formulado para adolescentes e jovens, que propõe, por exemplo, participar na eucaristia e comungar a sagrada comunhão todos os dias, rezar o santo rosário todos os dias, a adoração ao Santíssimo em frente ao sacrário onde Jesus está realmente presente. E, assim, cumprindo tudo o que se indica, o nosso nível de santidade aumentará prodigiosamente. Não estou a duvidar dos conteúdos expostos, mas do modo como se afirma – de modo rápido e mercantilista – que, se cumprirmos tudo, o nosso nível de santidade aumentará prodigiosamente. Queres ser santo de modo rápido, fácil e barato? Nós temos o kit ideal!
Quando me deparei com este kit para a santidade, recordei-me das aulas de Teologia Espiritual do professor Alexandre Freire Duarte. No decorrer da lecionação, com acerto, insistência e clarividência, explicava que, na vida espiritual, as promessas de rapidez são sempre de desconfiar, porque a configuração com Jesus acontece progressivamente. E, continuava ele, tudo o que não é progressivo, lento, adaptável é de evitar, porque o processo de seguimento de Jesus é belo e dador de felicidade, mas nunca é fácil ou rápido, porque, pelo menos, custa o nosso egoísmo.
Portanto, creio que não há um kit ideal para aceitar a ação do Espírito de Cristo, porque há uma variedade de percursos próprios de cada pessoa, vividos em comunidade como graça para todo o Corpo de Cristo e para o mundo. A configuração com Cristo é progressiva e dinâmica, vivida em Igreja e no embate com os acontecimentos quotidianos da sociedade.
O caminho de configuração com Jesus não é uma linha reta ou uma progressão constante, mas tece-se de continuidades e ruturas, onde os períodos de purificação, de iluminação e de comunhão no amor se sucedem em espiral. Deus não é apressado, e não lhe importa o tempo que demora a Sua ação a ser eficaz em nós, mas a qualidade do amor, da obra que realiza em nós com o nosso consentimento.
Ao amor de Deus corresponde o empenho da nossa liberdade, num processo lento e gradual. É a relação viva entre quem recebe um dom e procura corresponder-lhe. O processo de conversão não é cronológico, mas relacional, contínuo e obra de uma vida; não se dá no espaço de uma quaresma ou recorrendo a qualquer kit.
Pedro Sousa, aquiPedro Sousa é padre da diocese de Braga e assistente do CNE na Região de Braga.
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