sábado, 13 de janeiro de 2024

O que são relações irregulares?

 
Muito se tem dito e escrito sobre a declaração “Fiducia Suplicans”, da Congregação para a doutrina da Fé (CDF), que permite a bênção informal e fora do contexto litúrgico, de casais em situação irregular. Não tenciono, nem me sinto capacitado, para analisar a legitimidade ou não dessa declaração. Deixo essa análise para os teólogos, especialistas em teologia dogmática e para aqueles que, não tendo essa formação específica, mandam “bitaites”, com a mesma certeza de que são especialistas e sabem tudo, sobretudo sabem mais que a Santa Sé e a CDF.

Tenciono analisar o que são casais em situação irregular, que é uma terminologia que me inquieta há muito tempo. A irregularidade de uma relação é vista com os olhos de Deus ou dos homens? Se tentarmos compreender o que é uma relação irregular aos olhos de Deus, não podemos esquecer que em todas as Quaresmas, aquando do primeiro escrutínio batismal, escutamos todos os anos que Jesus Cristo, ainda que não esquecendo a sua condição matrimonial, mas não a martirizando com isso, concedeu a graça a uma samaritana, que vivia em situação irregular, de ser a principal anunciadora do Messias na cidade de Sicar, na Samaria (Jo. 4, 1-41). Provavelmente, por ela ter uma situação afetiva e familiar complicada, necessitava mais desse encontro com o Messias do que todos os Fariseus, que eram judeus rigorosamente observantes e que viviam de acordo com a lei judaica, mas que causaram a morte de Jesus Cristo.

Em que consiste a irregularidade de determinada relação? Eu não consigo encontrar resposta! Dizer-se que determinada relação é irregular é, na minha opinião, algo, não só profundamente injusto, como muito subjetivo. E é isso que a dita declaração trata. A maioria das pessoas olharam para a declaração da CDF, unicamente pela possibilidade de um ministro da Igreja Católica executar uma bênção informal e fora do contexto litúrgico a casais do mesmo sexo, mas a Declaração é mais do que isso. Mas, uma vez mais, as análises se afunilaram no problema da sexualidade. Ao contrário do Jesus Cristo fazia, nós temos a tendência para olhar a genitália e sexualizar, desse ponto de vista, todas as relações, como se a união entre duas pessoas do mesmo sexo se cingisse, unicamente, à possibilidade de práticas sexuais. O mesmo acontece com duas pessoas divorciadas, que se uniram numa relação de amor sincero: a sua união não é unicamente uma relação sexual. Não há nenhuma relação verdadeira que se limite, apenas, à questão sexual, seja heterossexual ou homossexual. Quem defende o contrário, das duas uma: ou desconhece a realidade das famílias, ou, de facto, tem um problema com a sua própria vida sexual.

Por outro lado, todos nós temos famílias e vivemos no mundo atual. E não há famílias perfeitas. Muitos membros da Igreja Católica, sobretudo da sua hierárquica, que criticam esta declaração, surpreendentemente esquecem-se que também têm família. O Clero atual, ao contrário do que sucedeu em séculos e décadas anteriores, nos quais éramos oriundos de famílias nobres e cristãs, também é, no presente, proveniente de famílias em união de facto, com pais divorciados, recasados em segunda ou terceira união, é têm membros da sua família (por exemplo, irmãos), que são homossexuais casados, em união civil. Não podemos esquecer o sítio onde nascemos e a família a que pertencemos. Negar a nossa origem familiar é negar a nossa identidade. Para já não falar de negar o direito à misericórdia e ao amor divino, que Jesus nos mostrou, através da samaritana, que todos têm.

Por fim, está na altura de a Igreja se preocupar veementemente com a violência familiar e de género, em vez da vida sentimental e sexual das pessoas, que precisam e querem a graça de Deus. Neste momento, passo a maior parte do meu tempo num país, onde quase todos os dias há crimes de violência de género. Sei disso, porque em Espanha há uma autêntica consciência pública e nacional contra estes crimes. Ora, Espanha e Portugal têm quase o mesmo número desta tipologia de crimes, mas têm uma grande diferença entre o número de habitantes. Espanha tem cerca de 40 milhões; em Portugal temos os eternos 10 milhões. Logo, em Portugal a percentagem de crimes por habitante é muito mais elevada. Mas curiosamente não há, nem de longe nem de perto, o mesmo ênfase no debate e na consciência pública sobre esses crimes. Esse assunto, para mim, é muito mais importante do que saber se devo ou não ser uma barreira à bênção de Deus, a pessoas que a procuram e necessitam dela.

Em que consiste a irregularidade de determinada relação? Para mim uma relação irregular é toda a relação humana em que habita permanentemente um estado de tristeza e angústia. Em todas as relações é necessária uma bênção para levar um pouco de luz e graça de Deus. E quem se negar a isso, não só está a criar um cisma na Igreja Católica, como – e arrisco a dizer que é o mais importante! – está a criar um cisma entre a vida e as circunstâncias concretas em que vivem as pessoas e a hierarquia local da Igreja Católica. Por isso, faço o que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, me pede. Grato a Deus, porque através do Seu Filho, Jesus Cristo, que derramou o seu sangue por todos, nos enche de Bênçãos.

P.e Miguel Neto, aqui

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