quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O Sínodo: avanços e recuos

Sinodais aplaudem o Papa na conclusão da assembleia do Sínodo dos Bispos, 26 outubro 2024. Foto Clara Raimundo

 O Sínodo terminou. Urge fazer o balanço dos progressos alcançados, mas também das hesitações, dos recuos e dos medos que fizeram titubear os seus trabalhos. 

Os avanços

Há aspetos de inegável progresso. Provavelmente, este papa ficará conhecido na história da Igreja sobretudo pelo apoio claro à forma sinodal de organização eclesial. Este é também o elemento mais positivo dos trabalhos sinodais. Se efetivamente posto em marcha, marcará a refundação da Igreja em moldes bem diversos da atual estrutura rigidamente hierarquizada (capturada pelo “poder sagrado”), profundamente avessa à prática da igualdade entre os crentes e alicerçada em formas autoritárias de exercício do poder. Este processo de afirmação monárquica do poder foi-se consolidando ao longo do segundo milénio do cristianismo. O atual processo de implementação da sinodalidade constitui um regresso às formas originárias da vida cristã e simultaneamente uma adaptação às formas democráticas com que os grupos e as nações tendem a organizar-se, pelo menos no Ocidente. Chama-se a isto, em linguagem eclesial: os sinais dos tempos.

A afirmação da sinodalidade fez-se sentir desde logo no próprio processo de auscultação das comunidades cristãs e na forma como o sínodo foi funcionando. Agora, porém, houve mais um elemento importante a considerar. Ao abdicar do “direito” de redigir e publicar uma Exortação Apostólica com base nas conclusões do sínodo, o papa veio dar coerência à prática da sinodalidade que ele próprio tem vindo a propor, mesmo em relação ao exercício do “poder petrino”. De facto, só uma comunidade profundamente hierarquizada (clerical, portanto) pode aceitar que a palavra pessoal do papa constitua o documento final de um sínodo, desvirtuando o valor das conclusões a que o próprio sínodo chegou, vertidas nas suas conclusões.

São também de louvar as orientações do documento final no sentido de se proceder a uma reforma do funcionamento da Igreja de modo a incluir espaços e tempos dedicados à sinodalidade em todos os níveis da sua organização. Há, porém, todo um trabalho a fazer no sentido de tornar tal desiderato realmente operativo, sob pena de o texto não passar de letra morta. O direito canónico e as estruturas que nele estão previstas não incluem esta nova visão do funcionamento da Igreja, pelo que urge proceder à revisão do texto canónico, tornando assim obrigatória a implementação das estruturas de auscultação, ao arrepio do centralismo com que párocos, bispos, conferências episcopais, etc. conduzem a vida interna das suas comunidades. 

Os recuos

Em sentido contrário, foi a decisão do papa de retirar da discussão pública, no âmbito do Sínodo, questões determinantes da vida da Igreja. Uma tal decisão foi mesmo a negação da forma sinodal que o papa tem proposto. É assim que observamos avanços e recuos no processo sinodal, vindos exatamente da pessoa que mais tem trabalhado no sentido de propor esta forma inovadora (e fundada na tradição antiga) de organizar a vida eclesial. Torna-se quase incompreensível que o papa Francisco dê tais sinais contraditórios, alimentando assim a ideia assumida por muitas personalidades destacadas da Igreja de que a sinodalidade é coisa transitória e sem futuro e, por isso mesmo, facultativa. Esta conceção está muito mais arreigada do que possamos supor e explica a maneira como muitas paróquias e dioceses continuam a organizar-se a partir dos parâmetros autoritários tradicionais.

O que terá levado Francisco a recuar de maneira tão categórica? Certamente a perceção de que a maioria dos membros do Sínodo seria favorável ao diaconado feminino, à ordenação das mulheres, a mudanças estruturais na moral sexual católica, à ordenação de homens casados, ao fim do celibato obrigatório associado à ordenação presbiteral, etc. Há também na Igreja um receio colossal do confronto de perspetivas, do debate livre de ideias, da tomada de decisão por via democrática. A hierarquia ainda vive claramente apegada ao poder de decidir, independentemente daquilo que possa pensar a maioria do povo cristão. Ainda que Francisco se tenha mostrado, neste aspeto, diferente dos dois papas que o precederam, o receio de os acontecimentos se precipitarem sem o seu controlo tê-lo-á levado a travar o ímpeto reformista que ele próprio pôs em andamento.

Ordenem mulheres; Conferência pela Ordenação de Mulheres; Sínodo

Manifestação da Conferência pela Ordenação de Mulheres, no início de Outubro 2024, em Roma, a pedir a ordenação de mulheres na Igreja Católica, coincidindo com a abertura do Sínodo sobre a Sinodalidade. Foto: Direitos reservados

Estamos, portanto, longe de uma Igreja efetivamente sinodal, na qual a hierarquia não se impõe como poder, mas como serviço a uma comunidade que é chamada a tomar decisões acerca do seu funcionamento. A meu ver, os dois sistemas são irreconciliáveis (exceto se se reequacionar o papel da hierarquia). Não há maneira de implementar uma Igreja sinodal que não implique necessariamente o esvaziamento do poder hierárquico no que às decisões fundamentais diz respeito. Tentar conciliar as duas formas organizacionais constitui a quadratura do círculo. Ao atribuir a reflexão sobre os temas candentes a comissões específicas, o papa optou claramente pela forma clerical de poder, negando à Igreja a possibilidade de decidir sobre tais questões. No entanto, esses são exatamente os problemas que mais preocupam as comunidades cristãs! Assim sendo, a ideia com que se fica é a de que a sinodalidade vale apenas quando as conclusões que dela derivam estão em sintonia com as conceções do poder hierárquico. Caso contrário, entra em ação a forma clerical de tomada de decisões, própria de uma Igreja governada autocraticamente, fundada na desigualdade fundamental entre os seus membros.

Não havendo conciliação possível entre estas duas formas de organizar o poder, a Igreja tem de optar. Caso o não faça abertamente, a sua inércia é já uma opção a favor da manutenção da ordem estabelecida.

É, portanto, com muita tristeza que vejo a questão do acesso das mulheres à ordenação adiada para as calendas gregas. O incómodo do prefeito para a Doutrina da Fé, quando questionado sobre o assunto, é disso um sintoma evidente.

As razões apontadas são, na sua maioria, ridículas e falsas. A Igreja é hoje, no Ocidente, praticamente a única estrutura que insiste em negar às mulheres o direito de acederem a certos lugares de chefia, exclusivamente ocupados por homens. Os que preferem manter uma Igreja masculinizada argumentam que a ordenação feminina seria uma forma inaceitável de clericalizar as mulheres. Até posso concordar com esta posição, mas os que a defendem não retiram dela as necessárias conclusões. Se se reconhece que o acesso ao sacramento da ordem é uma forma de clericalizar as mulheres, teria de se reconhecer que a ordenação de homens tem o mesmo efeito nefasto, pelo que, a sermos coerentes, deveríamos eliminar simplesmente o sacramento da ordem. Ou será que só clericaliza mulheres e os homens estão imunes a esse efeito danoso? Não haverá por detrás desta argumentação falaciosa um misoginismo essencial, estrutural e secular, uma desconfiança fundamental em relação ao papel da mulher fora do âmbito estrito da vida familiar? Sejamos honestos na forma como expomos os nossos argumentos! Deixemo-nos de produzir especulação sofística, por forma a defender a todo o custo a ordem secularmente instituída, fundada em conceções preconceituosas sobre a “incapacidade” de a mulher organizar a vida coletiva! Os leigos podem não ter muita formação teológica, mas não são tolos nem gostam de ser tratados como tal.

Esta, a meu ver, foi a maior desilusão dos trabalhos do sínodo. Se o fim do celibato obrigatório era importante, como o era também a ordenação de homens casados, estas duas questões estão longe de se compararem ao problema da discriminação sistemática da mulher na vida eclesial.

Outra grande desilusão diz respeito à reforma da moral sexual. Tudo se passou no imobilismo de sempre, como se não se tratasse de uma questão central e urgentíssima da reforma da Igreja. Uma moral sexual que se ergue como edifício especulativo não respaldado por nenhuma lógica racional, mas baseado no conceito de uma natureza humana cujas características são arbitrariamente determinadas pelos órgãos do poder eclesial, não convence e, portanto, não promove a sua prática na vida de cada cristão. Hoje, temos uma moral pormenorizadamente definida em textos do magistério, mas inteiramente ignorada pela prática da vida de muitos cristãos. Esta esquizofrenia entre a vida e a doutrina talvez devesse levar as instâncias de poder a questionar-se acerca da pertinência do que tem proposto (ou imposto). Afinal, acreditamos que o Espírito se revela através da vida concreta dos fiéis ou reduzimos a sua ação às considerações doutrinais da hierarquia? 

Jorge Paulo é católico e professor do ensino básico e secundário

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