Das duas, uma: ou Aníbal Cavaco Silva teve um lapso de lucidez, ou decidiu  expor da forma mais despudorada e obscena o enorme desprezo e falta de respeito  que tem pelos seus concidadãos. 
Vamos, pois, aos factos. Abordado ontem por jornalistas no Porto sobre o  facto de, enquanto reformado do Banco de Portugal, receber subsídio de férias e  de Natal, o Presidente da República decidiu embaraçar-se primeiro e responder  depois. 
Disse Cavaco, cito de cor, que os 1300 euros mensais (líquidos?) que recebe  da Caixa Geral de Aposentações, para a qual descontou mais de 40 anos, "ouviu  bem? 1300 euros", sublinhou, "quase de certeza não vão dar para pagar as minhas  despesas". 
Antes de mais, a pergunta era ao pensionista do Banco de Portugal e não ao  reformado da Caixa Geral de Aposentações, como, num exercício de "chico  espertice" tipicamente lusitano, o Presidente da República quis deliberadamente  conduzir a resposta, omitindo aquilo que, nem duas horas depois, lhe caiu em  cima: a declaração de rendimentos entregue a 14 de dezembro de 2010 no Tribunal  Constitucional, aquando da sua recandidatura à Presidência da República, em que  publicita como é de lei os euro140 601,81 auferidos anualmente em pensões. 
Mas, ultrapassado este pormenor, atenhamo-nos ao essencial. Num país em que o  número de desempregados ultrapassa os 600 mil, em que o salário médio líquido  não chega aos 800 euros, em que o número de pensionistas que recebem abaixo do  ordenado mínimo nacional ultrapassa o milhão de portugueses, é no mínimo  aviltante ouvir um Presidente da República dizer que os 1300 euros mensais -  mesmo que esta seja apenas uma pequena parte do bolo total legitimamente  auferido - que recebe da Caixa Geral de Aposentações - "ouviu bem? 1300 euros" -  "quase de certeza não vão dar para pagar as minhas despesas". 
E mesmo que fosse total e não parcial a paupérrima soma de 1300 euros mensais  de que se queixa Cavaco Silva, olhemos substantivamente para a realidade. Foi na  campanha eleitoral das últimas eleições presidenciais que, interpelado por uma  pensionista de Penafiel, o candidato deu o exemplo de Maria, sua mulher, cuja  reforma "não chega aos 800 euros". Não querendo de maneira alguma intrometer-me  na vida privada do cidadão Aníbal Cavaco Silva, é licito fazer as contas,  parciais é certo, e perguntar: quantos casais de reformados em Portugal se podem  dar ao luxo de viver com 2000 euros (líquidos?) por mês? Aliás, em abono do  rigor, neste caso estamos a falar de mais de dez mil euros mensais.
É certo que Cavaco Silva abdicou do salário de Presidente da República,  optando por uma espécie de trabalho pro bono em Belém e pelo pagamento das  pensões que, somadas, são superiores ao ordenado presidencial. Porém, fê-lo não  para dar o exemplo mas porque a lei passou a impedi-lo de acumular pensões  públicas com a remuneração do desempenho de funções no Estado. Esta alteração  legal deu-se pelas circunstâncias difíceis em que o País já então se encontrava.  Mas Cavaco Silva, como político profissional que é, soube capitalizar a seu  favor esta mudança e, para a opinião pública, passou a imagem de que a abdicação  tinha sido voluntária. Tudo seria mais claro se, sem perder o direito futuro às  pensões para as quais descontou, tivesse optado pela sua suspensão e por receber  o ordenado da função que atualmente desempenha. 
A um Presidente da República exige-se sempre, mas sobretudo no contexto  social que atravessamos, seriedade intelectual, sentido da responsabilidade,  capacidade de liderança, de mobilização e de dar o exemplo, e sensibilidade  social. Queixar-se em público desta forma, ainda para mais omitindo  voluntariamente parte da verdade, é insultuoso para todo um país em  dificuldades.
Ainda bem que, em democracia, podemos escrutinar os rendimentos dos titulares  de cargos públicos. Ainda bem que, apesar de ele não o ter dito, temos acesso ao  total das remunerações auferidas pelo cidadão Aníbal Cavaco Silva. Não por  despeito, cobiça ou qualquer espécie de voyeurismo barato. Apenas porque não há  nada de pior no ser humano do que o miserabilismo.
NUNO SARAIVA, aqui
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